Diversidade funcional: por que você precisa falar disso
Você já ouviu falar em diversidade funcional?
Dentre as muitas diferenças que são motivo de desigualdades na nossa sociedade, a que conhecemos como “deficiência” é ainda muito pouco discutida, conhecida e priorizada, mesmo pelas pessoas e organizações comprometidas com a construção de um mundo melhor. Como levar essa pauta para mais perto de todas e todos, e ajudar as pessoas a perceberem que todos nós temos a ver com isso?
Acredito que a ideia de diversidade funcional, que vem abrindo a minha mente, traz valiosas pistas nesse sentido. Conheci esse conceito em um curso que fiz com a incrível María Elvira Díaz-Benítez na UFRJ em 2015 sobre “Interseccionalidade e Marcadores Sociais da Diferença”, em que li Melania Moscoso e Robert McRuer.
Diversidade funcional é uma expressão alternativa a “deficiência”, que busca romper com a ideia negativa e pejorativa geralmente associada a pessoas e corpos que estão fora de um suposto padrão de “normalidade”. O conceito foi proposto por Agustina Palacios e Javier Romañach em janeiro de 2005 no Fórum de Vida Independente, na Espanha.
As terminologias geralmente aplicadas às deficiências foram desenvolvidas inicialmente por atores do campo da medicina, seguridade social e reabilitação, não por pessoas com diversidade funcional. Como explica o Dr. Ray Pereira, essas terminologias responsabilizam diretamente a pessoa por sua condição física ou orgânica, ao mesmo tempo em que parecem isentar a sociedade e o ambiente físico de qualquer responsabilidade ou participação.
“Por ironia, as chamadas pessoas com deficiência tornam-se limitadas exatamente naqueles pontos em que a sociedade e/ou o ambiente são excludentes em relação à diversidade funcional. Conscientes de que a linguagem produz, modifica e orienta o pensamento, algumas organizações de pessoas com diferença funcional têm investido em novos termos, com o intuito de implantar outra concepção acerca da condição a que costumeiramente nos referimos como deficiência. A proposta dos espanhóis é substituir termos pejorativos como deficiência, incapacidade, invalidez etc. pela expressão diversidade funcional. Surge, então, a designação ‘mulheres e homens com diversidade funcional’, em substituição a ‘pessoa com deficiência’ e seus correlatos. A deficiência torna-se, assim, uma diferença funcional”. A explicação do Dr. Ray Pereira está nesse artigo.
Pessoas com diversidade funcional são pessoas que funcionam de maneira diferente, mas a quem não falta algo. Enfatizemos a diferença, não a “carência”. Virar essa chave é fundamental para que pessoas com diversas configurações de corpos e cognições não sejam impedidas de exercer sua própria individualidade e capacidade de agência e de decisão. Para que sejam vistas e tratadas como sujeitas de direitos, e não como objetos de intervenção, nas palavras da uruguaia Mariana Mancebo.
E também para questionarmos a produção e os limites do que entendemos como normal ou capaz: a “deficiência” também é relacional, todos podem precisar de assistência em algum momento. Como escreve Debora Diniz, “deve-se entender deficiência como um conceito amplo e relacional. É deficiência toda e qualquer forma de desvantagem resultante da relação do corpo com lesões e a sociedade”.
Trata-se de enxergar a questão para além de um modelo biomédico, focado na reabilitação e na “correção de um problema”, para um modelo social, focado na opressão social vivida por essas pessoas. O problema não está no indivíduo, mas nos padrões de vida, mobilidade e fruição dos sentidos que a sociedade nos impõe. A diversidade funcional fala menos sobre lesões orgânicas ou corporais e mais sobre aspectos sociais, arquitetônicos, comunicacionais que formatam e limitam nosso mundo, produzindo o que Robert McRuer chama de “integridade corporal obrigatória”.
“O movimento pela diversidade funcional mostra que a deficiência não é uma condição natural, mas o efeito de um processo social e político de incapacitação. O mundo sonoro não é melhor que a surdez. A vida bípede, vertical e móvel não é uma vida melhor sem a arquitetura que a possibilita”, escreve Preciado.
Para transformar nossa visão e avançar com os direitos das pessoas com diversidade funcional, precisamos trazer essas questões para o cotidiano de todos. Na minha jornada, eu tenho aprendido, por exemplo, com:
• Anahí Guedes de Mello, pesquisadora brasileira que é referência no tema e lidera a Rede Brasileira do Movimento de Vida Independente. Recomendo muito essa sua entrevista e o recente artigo em que Anahí mostra como iniciativas como o Teleton acabam reforçando o capacitismo, que é a discriminação de pessoas com diversidade funcional.
• Grupos como as Inclusivass e o Coletivo Feminista Helen Keller, que mostram como os movimentos de mulheres ainda precisam encarar essa pauta e visibilizar mulheres com diversidade funcional.
• Diversas mulheres brasileiras que estão falando sobre suas visões no Instagram, como Leandrinha Du Art, midiativista, escritora e fotógrafa; Lele Martins, criadora de conteúdo sobre autocuidado, moda, lifestyle e ser uma mulher negra com deficiência; Stephanie Marques e a youtuber anticapacitista Mariana Torquato.
• Judy Heumann, ativista estadunidense e liderança da luta pelos direitos das pessoas com deficiência, com ampla atuação com organizações e governos para o avanço de políticas públicas. Com ela aprendi o “Nada sobre nós sem nós”, lema do movimento de pessoas com diversidade funcional. Assista seu TEDx e também o fantástico filme Crip Camp: a Disability Revolution (2020). Disponível no Netflix, o documentário produzido por Barack e Michelle Obama conta a história do Camp Jened, acampamento de verão que reunia pessoas com diversidade funcional, de que Heumann foi frequentadora ativa.
• O encontro do coletivo de artistas Post-Op e a Associació per la Vida Indepent de Barcelona, retratado no filme Yes, We Fuck! (2015), que aborda a sexualidade de pessoas com diversidade funcional. Eles fazem parte do movimento handi-queer (pessoas com diversidade funcional/queer), que atua contra a ideia preconceituosa e equivocada de que corpos com diversidade funcional são assexuais ou não desejáveis.
• Alice Wong, criadora do Disability Visibility Project, uma comunidade online dedicada a criar, compartilhar e ampliar as representações midiáticas e culturais sobre deficiências. Seu livro está na minha lista de leituras de 2021.
+ por falar em livros, Jourdan Saunders compartilhou ontem esta lista de livros escritos por autores com diversidade funcional
+ conheci Alice Wong nessa inspiradora lista de Disability Future Fellows, de artistas e criadores com diversidade funcional apoiados pela Fundação Ford
+ no setor filantrópico, o Disability Philanthropy Forum é uma plataforma focada na troca de conhecimentos para a inclusão de pessoas com diversidade funcional
Para além das pessoas públicas, existem muitas pessoas com diversidade funcional ao nosso redor — mais de 1 bilhão de pessoas, 15% da população mundial, segundo a OMS. No Brasil, esse número chega a quase 25% — cerca de 46 milhões de pessoas, segundo o Censo de 2010.
Onde estão essas pessoas no nosso cotidiano? Onde elas poderiam estar?
Vamos ouvi-las e aprender com elas. Desconstruir binarismos permite enxergar melhor o infinito leque de possibilidades da existência humana. E liberta todas e todos nós.