Justiça social: sobre poderes e partilhas

Renata Saavedra
5 min readFeb 17, 2021

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20 de fevereiro é o Dia Mundial da Justiça Social. A data foi criada pela ONU em 2007, reconhecendo que “o desenvolvimento social e a justiça social justice são indispensáveis para alcançar e manter a paz e a segurança dentro e entre as nações”. O objetivo é destacar a importância de enfrentar questões como pobreza, exclusão, desigualdades de raça, gênero e sexualidade, desemprego e proteção social.

Mas o que é justiça social?

Justiça social é a visão de que todas as pessoas merecem oportunidades e direitos econômicos, políticos e sociais iguais.

Em nosso mundo, significa reduzir as desigualdades, transformar e reequilibrar as relações de poder e promover reparação histórica.

Como fazer isso? Para dar conta de um desafio complexo como esse — o mais complexo de todos, talvez — precisamos de diversas soluções e de todos os setores da sociedade.

Uma delas vem sendo praticada por algumas organizações que se dedicam à filantropia para a justiça social. Como escreve Ana Toni, “o título de filantropia de justiça social é específico de um pequeno grupo de organizações no Brasil. A filantropia de justiça social tem, no cerne de sua ação, as desigualdades das relações de poder na sociedade, e não de todos os outros importantes aspectos de desigualdades ou problemas sociais que afligem nosso cotidiano”.

O texto de Ana Toni abre o livro Filantropia de justiça social, sociedade civil e movimentos sociais no Brasil (2018), publicação pioneira sobre o tema no país, organizada por Graciela Hopstein, Coordenadora executiva da Rede de Filantropia para a Justiça Social (e disponível online)

Além de buscar transformar as relações de poder na sociedade, a filantropia para a justiça social se caracteriza pelo apoio às organizações da sociedade civil e/aos movimentos sociais, por meio de doações diretas de recursos — doação de dinheiro principalmente (o chamado grantmaking), mas também de contatos, redes, conhecimento, desenvolvimento de capacidades, oportunidades.

Segundo Graciela Hopstein, esse apoio é “uma ação estratégica que contribui não apenas para a sustentabilidade financeira, mas principalmente para o fortalecimento de agendas vinculadas aos campos da justiça social, dos direitos humanos e da cidadania, alavancando processos de transformação, atendendo públicos vulneráveis e marginalizados no acesso aos direitos”.

Uma sociedade civil organizada forte é fundamental para que tenhamos uma democracia sólida e participativa. São as organizações da sociedade civil (OSCs), de diferentes portes, formais ou informais, que produzem e disseminam conhecimento e pesquisas de ponta, acompanham e monitoram atividades dos governos e contribuem para a formulação e implementação de políticas públicas.

Em livro recente em que alerta para o crescente fechamento do espaço cívico — que é a camada situada entre o Estado, os negócios e a família, na qual os cidadãos se organizam, debatem e agem –, Ilona Szabó, do Instituto Igarapé, explica:

“Um espaço cívico saudável e aberto implica que grupos e indivíduos da sociedade civil sejam capazes de se organizar, participar e se comunicar sem impedimentos — e, ao fazê-lo, possam acessar informação, reivindicar seus direitos e influenciar a opinião pública, as políticas públicas e as estruturas políticas e sociais ao seu redor”.

+Ilona Szabó falou desse seu livro — “A defesa do espaço cívico” — nessa entrevista no programa Roda Viva em janeiro deste ano.

Apesar disso, governos e mídia brasileiros costumam criminalizar as ONGs e os movimentos sociais, o que gera um clima de falta de confiança, em vez de informar à população sobre como todos os seus direitos são resultado do trabalho desses grupos.

“Movimentos sociais e organizações da sociedade civil estão à frente da defesa dos interesses de pessoas que sofrem abusos e têm seus direitos ameaçados, como mulheres, povos indígenas, quilombolas, negras e negros, população LGBT+, crianças e adolescentes”, escrevem Ana Valéria Araújo e Maíra Junqueira, então coordenadoras do Fundo Brasil.

Nossas oportunidades

Vivemos um momento extremamente oportuno para reconhecer, proteger e impulsionar o trabalho dessas organizações e movimentos sociais. Foram esses grupos que impediram uma tragédia ainda maior na pandemia.

“Em outros momentos na história recente do Brasil, especialmente no marco da redemocratização, tivemos a oportunidade de testemunhar a vitalidade e a criatividade da sociedade civil em articular respostas a crises de diferentes naturezas. Diante da pandemia atual da Covid-19, vemos, novamente, uma mobilização vigorosa de coletivos e organizações, especialmente aquelas atuantes nos territórios de favelas e periferias, em um esforço para fazer chegar informação e bens de primeira necessidade às milhares de famílias empurradas para situações de extrema vulnerabilidade, tanto do ponto de vista econômico, quanto das condições de saúde”, diz Átila Roque, diretor da Fundação Ford no Brasil.

Nesse cenário, é preciso aumentar o apoio à sociedade civil, mas não apenas: além de doar mais, é preciso doar melhor. Doar com mais confiança, por exemplo.

Uma iniciativa muito inspiradora nesse sentido é o Trust-based Philanthropy Project [Projeto Filantropia baseada na confiança]. Reconhecendo o desequilíbrio de poder inerente entre fundações filantrópicas e organizações apoiadas, eles defendem que a filantropia será mais bem-sucedida, recompensadora e eficaz se os financiadores abordarem seus relacionamentos com donatários a partir de um lugar de confiança, humildade e transparência.

Se a filantropia pode ser um exercício de poder, os filantropos devem transformar, compartilhar e criticar seu próprio poder como financiadores.

Devemos lembrar que a semente da filantropia para a justiça social no Brasil foi plantada pelas irmandades religiosas negras, que pagaram pela liberdade de seus irmãos e irmãs escravizados. Compartilhar, mudar e transferir o poder estava lá, desde o início.

Isso requer que diversidade e justiça social sejam valores profundamente incorporados e plenamente praticados.

“Precisamos de uma agenda para a filantropia enraizada na justiça e na justiça social em termos de raça, classe, clima e gênero. Esta agenda não é apenas externa, em termos de para onde os financiadores direcionam seu dinheiro, mas também interna, em termos das próprias práticas e composição das fundações.

Isso significa examinar a representação de pessoas negras e mulheres nos cargos profissionais mais seniores nas equipes e conselhos de fundações. Enquanto o progresso está sendo feito, por que em 2018 apenas uma das 35 maiores fundações na Alemanha tinha uma CEO mulher em 2018?”, escreve Charles Keidan.

O caminho é longo, mas temos boas pistas de como seguir rumo a um mundo mais justo. Essas pistas estão nas bases da sociedade, na experiência de pessoas que resistem e se reinventam por gerações. Nas comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, na sabedoria ancestral que a natureza gesta.

Edgar Villanueva, por exemplo, compartilha a sabedoria indígena de seus antepassados para que possamos descolonizar a riqueza. Nas tradições indígenas, a medicina e os medicamentos são formas de alcançar o equilíbrio.

“O dinheiro deve ser uma ferramenta de amor, para facilitar relacionamentos, para nos ajudar a prosperar, ao invés de nos ferir e nos dividir. Se for usado para propósitos sagrados, vivificantes e restauradores, pode ser um remédio”.

“O dinheiro, usado como remédio, pode nos ajudar a descolonizar”.

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Renata Saavedra
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Written by Renata Saavedra

Pesquisadora, feminista e fruto do sistema de educação pública brasileiro. Researcher, feminist and product of the Brazilian public education system.

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