Intelectuais negras/os em rede

Renata Saavedra
6 min readApr 6, 2021
Ilustração de Marcelo Jean Machado para o livro de passatempos “Cientistas Negras: Brasileiras — Volume 1”, disponível aqui

Os espaços formais de produção de conhecimento no Brasil mudaram, felizmente, graças a muita luta dos movimentos negros. “A política de cotas foi a grande revolução implementada no Brasil e que beneficia toda a sociedade”, disse frei David Santos da Educafro à Agência Brasil, informando que o número de negros na universidade cresceu 400%.

Não apenas as políticas de ações afirmativas, mas também iniciativas como o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), a reestruturação do programa de financiamento estudantil (Fundo de Financiamento Estudantil — Fies) e a criação do Programa Universidade para Todos (ProUni) permitiram a expansão significativa da educação superior no período recente, mas muitas desigualdades ainda persistem. (sobre o assunto, acesse o relatório Ação Afirmativa e população negra na educação superior: acesso e perfil discente, de Tatiana Dias Silva, do Ipea)

+ Passos que vêm de longe: muitas e muitos constroem esse caminho há muito tempo. Ouça essa fala do sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira, que organizou em 1977 a “Quinzena do Negro da USP”. Imagens desse evento e de vários outros momentos marcantes dos movimentos negros brasileiros entre 1977 e 1988, costuradas pela história da historiadora e ativista Beatriz Nascimento, estão no documentário Orí (1989), de Raquel Gerber.

O caminho rumo à expansão e democratização do ensino superior ainda é longo. Na semana passada, em 25 de março de 2021, tomou posse a primeira reitora negra de uma instituição de ensino superior no estado do Rio de Janeiro (a engenheira química Drª Luanda Silva de Moraes assumiu a reitoria da Uezo, centro Universitário Estadual da Zona Oeste).

“Aos poucos, pesquisadores e pesquisadoras oriundos de diferentes grupos sociais e étnico-raciais e/ou comprometidos com esses setores sociais começam a se inserir de maneira mais significativa nas universidades do país, sobretudo as públicas, e desencadeiam um outro tipo de produção do conhecimento. Um conhecimento realizado ‘por’ esses sujeitos que, ao desenvolverem suas pesquisas, privilegiam a parceria ‘com’ os movimentos sociais e extrapolam a tendência ainda hegemônica no campo das Ciências Humanas e Sociais de produzir conhecimento ‘sobre’ o movimento e os seus sujeitos” (Nilma Lino Gomes, em O Movimento Negro Educador, 2017, p.421).

Como já conversamos por aqui, tudo isso não é “só” sobre justiça racial. Uma ciência que é produzida por uma parcela pequena da população é uma ciência falha.

Todas as práticas que excluem ou negam as pessoas não brancas como produtoras de cultura, conhecimento e ciência produziram e produzem “uma redução do horizonte de conhecimento possível para a humanidade”, diz Sueli Carneiro.

Práticas que levam ao chamado epistemicídio, à morte do conhecimento e dos saberes do outro. Epistemicídio é “toda tentativa de silenciar, anular, subalternizar e invisibilizar saberes não-hegemônicos”, como explica o Vinícius da Silva. Ouça diretamente Sueli Carneiro nesse vídeo de 2 minutos produzido pelo Instituto Serrapilheira:

Pois sim, podemos fazer diferente, e há diversas/os pesquisadoras/es trabalhando juntas/os para isso, construindo redes e coletivos que estão transformando espaços de saber e de poder. Lugares onde “a realização de uma pesquisa só pode ser exitosa quando recuperamos nossas memórias de resistência e quando entendemos os processos realizados em redes colaborativas”, como diz Ana Beatriz da Silva no texto “Práxis insurgente em organizações de mulheres negras: educação antirracista como centralidade”.

Escrevo esse texto para celebrar e compartilhar sobre a existência de três iniciativas coletivas do Rio de Janeiro:

Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras (RECEN)

Criada em 2015, a Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras é um espaço de troca de experiências de educação antirracista (acesse o site e o Facebook).

“Como proposta de “des-aprendizagem” e de “re-aprendizagem” assumimos percursos contra-hegemônicos que envolvem cosmopercepções advindas das culturas afrodescendentes e africanas, e sendo assim, importa incluirmos os múltiplos espaços de formação, indo além dos muros das escolas. Isso porque as outras educações se dão nas associações de bairro, nos territórios das comunidades das periferias, nas Casas de Santo, nas agremiações carnavalescas, nas Organizações de Mulheres Negras, nos coletivos de estudantes negras (os), nos grupos de formação política e de afirmação identitária”, apresentam-se.

A Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras é fruto das inspirações e do diálogo estabelecido com a Red de Maestros y Maestras Hilos de Ananse, de Bogotá, Colômbia. Elas se conectam também com iniciativas como a Tertúlia de Mujeres Afrolatinoamericanas (Buenos Aires) e a Red Barrial Afrodescendiente de Cuba (Havana).

“O diálogo com a América Latina, principalmente com a experiência afro-colombiana, é um marco para a criação de diferentes espaços coletivos e o contato com esses grupos e com suas dinâmicas de cooperação propiciou uma compreensão diferenciada do que é enfrentar silenciamentos sobre as assimetrias de poder nas esferas educacionais e, sobretudo, naquelas gestadas por redes de educadoras/es populares”, dizem Claudia Miranda, Danielle Galvão e Fanny Quiñones no artigo “Redes de Etnoeducadoras/es no Brasil e na Colômbia: movimentos casa adentro e casa afuera”.

Esse artigo abre o livro “Pesquisa em rede de mulheres negras” (Editora Nandyala, 2020), lançado por essa rede de pesquisadoras, que reúne pesquisas sobre trajetórias escolares de mulheres negras trabalhadoras domésticas, trabalhadoras sexuais, mulheres encarceradas, etc.

“Podemos afirmar que pesquisar em redes de mulheres negras tem significado recompor as possibilidades de cruzar fronteiras político-epistêmicas, possibilidades de desaprender sobre as narrativas inventadas sobre os movimentos sociais negros e de mulheres negras”, escreve Claudia Miranda (p.44).

Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras na UFRJ

Liderado pela Profª Drª Giovana Xavier, o Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras na UFRJ surgiu em 2014 “do desejo de congregar mulheres negras de diferentes áreas para construção de uma rede feminista negra engajada na produção de conhecimentos e promoção de ações com foco em comunidades negras, suas experiências e histórias”. Em 2015, Giovana Xavier começou a oferecer o curso “Intelectuais Negras: escritas de si, saberes transgressores e práticas educativas de mulheres”, que depois se desdobrou em outros cursos, eventos e projetos de extensão.

Uma das ações do grupo foi a produção do Catálogo Intelectuais Negras Visíveis, que reúne 181 profissionais negras atuantes em campos variados nas cinco regiões do país.

“Ancorados nos aportes teórico-metodológicos de valores civilizatórios afrobrasileiros como ancestralidade, afetividade, corpo, ludicidade (TRINDADE, 2006), a presença do Grupo Intelectuais Negras na UFRJ gera uma infinidade de conteúdos sobre relações raciais e de gênero, importantes para estudo da história do tempo presente. Identificação, reconhecimento, empatia. Curiosidade, estranhamento, suspeição, diante de instigante paisagem. Uma sala de aula na zona sul do Rio de Janeiro protagonizada por jovens negras. Universitárias de diferentes estados, países e cantos da cidade que mesclando diários, poemas, lápis de cor e textos científicos vivenciam experiência de formação acadêmica singular”, escreve Giovana em seu artigo “Grupo Intelectuais negras UFRJ: a invenção de uma comunidade científica e seus desafios”.

Coletivo de Docentes Negras/os da UFRJ

O Rio de Janeiro tem ainda a celebrar o lançamento do Coletivo de Docentes Negras/os da UFRJ, movimento recém-criado que, no dia 22 de março de 2021, entregou à reitoria um manifesto com uma série de reivindicações para reduzir o racismo na universidade e ampliar a participação negra na vida acadêmica.

O Coletivo é composto por docentes de diferentes níveis da carreira (titulares, associados, adjuntos, assistentes e substitutos), oriundos de todos os Centros e áreas de conhecimento da UFRJ, do Fórum de Ciência e Cultura e do Campus de Macaé, provenientes de 20 unidades da Universidade.

Assinado inicialmente por 59 docentes, o manifesto lista 10 propostas, entre elas tornar obrigatória a reserva de vagas para negras/os e indígenas nos processos seletivos para ingresso de discentes em todos os programas de pós-graduação da UFRJ, e construir e viabilizar ações de visibilização, de reconhecimento e de valorização da memória da produção acadêmica e tecnológica de docentes negras/os e indígenas da UFRJ. Acesse o manifesto aqui.

+ Acaba de ser lançado também o livro “Enciclopédia negra: biografias afro-brasileiras”, de Flávio Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz, com 416 verbetes biográficos resgatam para o público brasileiro a memória silenciada de diversas pessoas negras. “A Enciclopédia Negra faz um trabalho de reparação histórica ao identificar figuras desconhecidas pela maioria dos brasileiros”, escreveu Jefferson Barbosa. Confira aqui uma conversa online dos autores mediada pela filósofa Djamila Ribeiro (que, por sua vez, coordena a coleção Feminismos Plurais, que dissemina conteúdo crítico produzido por pessoas negras, sobretudo mulheres, a preço acessível e linguagem didática.

O caminho é longo, mas há muitas e muitos apontando a direção e seguindo em frente.

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Renata Saavedra

Pesquisadora, feminista e fruto do sistema de educação pública brasileiro. Researcher, feminist and product of the Brazilian public education system.